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Abastecimento de água e a crise do saneamento básico

A crise do abastecimento de água no país, sobretudo no Sudeste, expõe fragilidades na gestão de recursos hídricos e explicita uma grande desarticulação político-institucional entre as esferas de poder que atuam nesse tema: União e Estados, como detentores do domínio das águas e os municípios, responsáveis pelas políticas urbanas e titulares dos serviços públicos de saneamento básico: abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e drenagem, conforme estabelecido nas Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico.

Os recursos hídricos (Lei 9.433/1997), o saneamento básico (Lei 11.445/2014) e o meio ambiente (Lei 6.938/1981) são objetos de políticas públicas específicas, com princípios e diretrizes próprias e instrumentos compatíveis com a sua implementação. Todavia, essa compartimentação normativa não significa que a gestão dessas políticas possa ocorrer de modo desarticulado. Os três temas, por sua natureza, estão intrinsecamente relacionados com a segurança hídrica e a sua gestão deveria convergir, de forma integrada, para a manutenção da qualidade ambiental, do solo, da cobertura vegetal, das águas e da saúde pública.

A questão que se coloca diz respeito à qualidade e abrangência dos serviços de saneamento básico, principalmente nas cidades: os esgotos domésticos não tratados, os resíduos urbanos não coletados ou sem destinação correta e as águas de chuva sem o devido tratamento prévio poluem as águas dos rios e lagos, que ficam imprestáveis para usos mais nobres, como é o caso do abastecimento público. É preciso, pois, mudar a lógica histórica do sistema de decisões, que prioriza invariavelmente a busca de fontes de abastecimento cada vez mais distantes, a preços cada vez mais altos, em obras de impacto ambiental relevante.

Diante da gravidade da situação, conflito de competências entre entes federados não deveriam ter mais lugar.

O Sistema Cantareira é uma transposição de bacia hidrográfica dos anos 1970 que deriva para a região metropolitana de São Paulo (RMSP) cerca de 30m3 /s da bacia do Rio Piracicaba. Mas não há obra que seja suficiente para uma demanda sem controle e sem uma política ajustada ao uso racional da água de forma efetiva e não apenas como preceito legal. Tais alternativas, se por um lado resolvem de modo temporário o abastecimento nos grandes centros, por outro lado comprometem o desenvolvimento nas regiões de onde a água é retirada, pela indisponibilidade do recurso, exportado para outro local.

As leis exigem tratamento e destinação adequada dos resíduos, sejam eles originados na limpeza urbana, na drenagem ou ainda no esgotamento sanitário. Essa exigência possui uma lógica clara, que é justamente evitar a poluição dos recursos hídricos. Os serviços de saneamento básico devem ser prestados integralmente porque a sua ausência ou a má prestação causa danos, entre outros bens, às águas.

Ao longo dos anos, apesar das normas existentes, voltadas à proteção do meio ambiente, predominou nas decisões governamentais a preferência ao abastecimento de água, em detrimento dos demais serviços de saneamento, como se uma ação pudesse excluir as outras, sem nenhuma consequência. Pensar em água limpa sem tratar resíduos inviabiliza a sustentabilidade do abastecimento. O equilíbrio nas ações de saneamento é fundamental para garantir a salubridade.

Vive-se nas periferias das cidades uma situação em que mesmo que haja água potável nas casas, os esgotos correm pelas ruas, gerando consequências para o meio ambiente, a saúde pública e o bem estar das pessoas, que convivem com essa realidade como parte de suas vidas. Mais desalentador que isso, programas de governo destinados ao saneamento dessa áreas, com regularização fundiária, criação de parques lineares e outros equipamentos destinados à melhoria da qualidade ambiental não possuem continuidade, sobretudo pela falta de articulação e cooperação institucional entre Estados e municípios, na implantação das políticas urbanas, de saneamento, de meio ambiente e de recursos hídricos.

Como resultado dessa realidade, segundo o Sistema de Informações sobre Saneamento (SNIS), 95% da população urbana no Brasil (160 milhões de habitantes) têm acesso à água potável. Mas não se chega a tratar 15% dos esgotos urbanos (25 milhões de habitantes). Ou seja, o esgoto correspondente a 145 milhões de habitantes das cidades é despejado in natura nos rios urbanos, o que configura uma verdadeira afronta aos direitos humanos.

Nesse cenário, se a água limpa é importante para o abastecimento, é preciso conservar esse recurso, diminuir as imensas perdas nos sistemas de abastecimento e conservar o solo e as florestas para melhorar a produção natural da água, buscando parcerias com os produtores rurais na adoção de práticas adequadas a essa conservação. Muitos instrumentos econômicos previstos nas leis estão disponíveis, mas carecem de aplicação, por falta de informação, excesso de burocracia, falta de prioridades para a aplicação de recursos.

Por mais rico que o país seja em hidrologia, a distribuição geográfica não é homogênea e o recurso é cada vez mais pressionado pelas atividades humanas. A segurança hídrica passa, neste momento, a ocupar um lugar de destaque nas discussões econômicas e de sustentabilidade, ensejando uma mudança de paradigma de toda a sociedade, no sentido de adequar suas ligações aos sistemas de água e esgoto e exigir dos poderes públicos cooperação e articulação permanentes na gestão das políticas públicas e nas ações de saneamento básico, com o efetivo tratamento dos esgotos urbanos.

Conflitos de competências e atribuições entre a União, Estados e municípios não têm mais lugar no atual cenário e devem ser solucionadas pelos entes responsáveis. Não há tempo a perder e o passivo social, econômico e político é grande. Essa é uma dura lição que não pode esperar para ser aprendida.

Por Maria Luiza Machado Granziera, professora do programa de mestrado e doutorado em Direito Ambiental da Unisantos. Autora dos livros Direito de Águas – disciplina jurídica das águas doces e Direito Ambiental (Atlas).

Fonte: Valor Econômico, Opinião, 24/07/14

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