O acesso à rede de esgoto sanitário é considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) um direito humano fundamental. No Brasil, porém, o tema vem sendo relegado a plano secundário pelos governos com desumana indiferença. Recente levantamento da ONG Contas Abertas indica que, nos últimos 16 anos, mais de 60% dos recursos federais autorizados para o saneamento básico não foram investidos na área.
A pesquisa analisou os gastos públicos de 2000 a 2015 na área de saneamento. No período foram autorizados, em valores atualizados, R$ 50,5 bilhões para aplicações federais nas subfunções “Saneamento Básico Rural” e “Saneamento Básico Urbano”. Desse total, apenas R$ 19 bilhões foram efetivamente gastos, o que representa meros 37,7 % do valor autorizado. No período de 16 anos, o governo federal deixou de aplicar R$ 31,4 bilhões em saneamento básico. Eram valores que o Congresso Nacional autorizou, por meio das leis orçamentárias anuais, a gastar com saneamento, mas que, na hora de efetivamente investir, o Poder Executivo federal decidiu que havia outras prioridades e que o saneamento básico podia esperar.
O governo federal faz pouco caso não apenas de suas obrigações internacionais, já que o Brasil é signatário da declaração da ONU que reconhece o saneamento básico como um direito humano fundamental. Ele parece esquecer a própria legislação nacional. A Lei n.º 11.445/07 atribuiu à União a responsabilidade de elaborar o Plano Nacional de Saneamento Básico, com “os objetivos e metas nacionais e regionalizadas, de curto, médio e longo prazos, para a universalização dos serviços de saneamento básico e o alcance de níveis crescentes de saneamento básico no território nacional”. Ele engloba abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e drenagem das águas pluviais urbanas.
Aprovado em 2014, o atual Plano Nacional de Saneamento Básico estabelece como meta a universalização do abastecimento de água até 2023 e o atendimento de 92 % da população com rede de esgoto até 2033. No entanto, em fevereiro deste ano, o governo federal admitiu que o País “terá dificuldades” no cumprimento das metas. Era o reconhecimento antecipado da derrota, deixando transparecer a falta de comprometimento estatal com o saneamento básico.
Mais do que nas palavras, porém, o desleixo do poder público é evidente quando se olham os fatos. Segundo recente diagnóstico, mais de 42 % da população urbana brasileira não é atendida por redes coletoras de esgoto. Com esse quadro, não devem causar surpresa, portanto, as dificuldades encontradas para combater a proliferação de Aedes aegypti, responsável pela recente epidemia de zika no País. Tratase, portanto, de mais uma consequência desse conhecido modo de fazer política que, indiferente às reais prioridades nacionais, se contenta com promessas.
Essa disparidade entre discurso e realidade foi justamente o que ocorreu com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Desde sua primeira edição, o saneamento básico foi listado como uma prioridade da infraestrutura nacional. Os dados das várias edições revelam, porém, outra ordem de valores. De acordo com a entidade Contas Abertas, o PAC 1 (2007 a 2010) e o PAC 2 (2011 a 2014) previram R$ 62 bilhões para investimentos em saneamento. Foram gastos, no entanto, apenas R$ 4,2 bilhões, representando menos de 7% da previsão anunciada. Assim, o saneamento teve o pior resultado entre todos os setores do PAC. É um lamentável indicador da pouca preocupação dos governos petistas com o tema.
O desenvolvimento social do País inclui necessariamente uma mudança no patamar do saneamento básico. Sem água encanada e sem esgoto tratado, é difícil falar em melhora da qualidade de vida da população, por mais que possa ter havido crescimento do consumo. Não há margem de erro: toda vez que um governo posterga o saneamento básico, ele decide mal, ele perpetua a injustiça.
Fonte : Jornal “O Estado de São Paulo”